quarta-feira, 26 de maio de 2021

Terapia, Luto e Ressignificação

 

Na primeira vez sabia, inconscientemente, que não era possível mergulhar profundamente. Porém, eu fui porque os níveis altos de ansiedade, simulam pequenas braçadas e a falta de força fez quantidades grandes de água entrarem nos meus pulmões. Estava afogando!

Foram tantas cenas comuns a um mergulho na piscina, que prefiro iniciar por uma coleção inteira de dias, quando conseguia visualizar pequenos feixes de luz solar. Restavam tantas coisas para acontecerem, tantos diálogos para me escandalizarem e tantos “eus” para reencontrar.

Sim, o luto foi o primeiro desses dias.  E, talvez seja essa dor tão significante de invasão ao meu comodismo diário, que me trouxe gotas, goles e até um rio inteiro de verdades.  Nossa! O luto me esbofeteou, ou melhor, me levou ao nocaute, de uma forma que não fazia ideia que poderia. Perdi de vez o equilíbrio e só foi possível mudar todas aquelas verdades que tinha estabelecido sobre vida e morte.

Afinal, chegou a minha vez de reconhecer, que não teríamos mais despedidas, ligações rápidas, ligações demoradas ou apenas tomaríamos mais uma taça de sorvete juntos.  Na frente do meu celular, na única possibilidade de terapia dentro de uma pandemia, simplesmente tentei mergulhar o mais fundo que pude e de uma só vez! Era o meu movimento, quase que suicida, rumo as descobertas. Praticar apneia na terapia tem seu preço. Só queria que a solução estivesse ali, na infância - a dor recente poderia ser curada pela dor distante?

Doce ilusão, provavelmente, a minha inexperiência com a terapia, o volume crescente de impulsividade, misturado com a desorganização do fluxo incessante de pensamentos, aliados a um déficit de atenção crescente, que teimava em aparecer, em todos os relatos entre infância, adolescência, jovem vida adulta e no presente. Eles surgiam e eu começava a visualizar no retrovisor uma nova imagem.

Em meses, versões concretas minha apareciam. Os sintomas observados pelo psiquiatra e a psicanalista confirmavam: Você é seu pai! Inicialmente, ambos viram o TAG, Transtorno de Ansiedade Generalizado, que herdei da minha mãe, as doses de preocupação dela e algumas obsessões eram facilmente observadas, como sempre foi.

Porém, meu pai era TDAH. E essa comorbidade o definia de várias formas. Vivemos com um pai hiperativo, que passou a maior parte da vida sem tratamento adequado para o TDAH e isso trouxe grandes consequências para sua vida financeira, afetiva e social. Afinal, meu pai era impulsivo o bastante para vender tudo e ir morar na praia - em uma vila de pescadores vendendo água de coco. Era desatento a ponto de esquecer o aniversário dos filhos e da esposa, durante todos os anos  que viveu. Hiperativo com alguns vícios lícitos que o levaram a nunca conseguir economizar.

Meu pai vivia, custasse ou doesse a quem quer que fosse. Claramente, precisei aceitar as minhas semelhanças, que traziam as qualidades e também os defeitos, que até ontem eram inaceitáveis diante do meu olhar crítico e julgador de repórter.

Parece que começo a voltar a respirar, os mergulhos semanais começam a passar por uma transição, uma espécie de nado livre, com muitas páginas novas para serem preenchidas, outras para serem ressignificadas e principalmente sem que precise de salva vidas emprestados.

Afora, todo o processo vivido durante o luto, no fundo queria desesperadamente voltar para o Natal de 2019, quando sabia que aquele seria o meu último Natal com o meu pai. Trago ainda resquícios da dor latejante daquele verão, pelo simples fato que tentei fingir que tudo estava normal, quando na verdade eu já estava incomodada de ser quem teimava ser.

Naqueles dias queria apenas me fechar em um porão, ter força para trazê-lo para perto de mim e dos meus irmãos. Olhando para trás, minha mente ainda dói quando tenta confrontar o cenário: Meu pai morria. Ele carregava cachorros inclusive de baixo de chuva. Dormia no chão, em uma casa, que era tudo menos um lar, apenas um abrigo para que não o chamassem de sem teto.  Ele estava absolutamente sozinho, com dores grandes o suficiente que o fizeram parar de fumar, beber coca-cola e comer (seus grandes vícios). Sim, de obeso a esquelético. Era dolorido de mais para olhar e ver.

Por favor, peço que não me julgue e que acredite em mim:

Tive vontade de abandonar tudo. Tive vontade de nunca mais voltar e tive vontade de acabar com todo e qualquer sofrimento dele. Porém, com o tempo aprendi a compreender que precisamos respeitar a individualidade do outro e o livre arbítrio. Depois das férias, sinto que junto com meus irmãos fizemos o que poderíamos fazer. E sei, que ele soube o quanto o amávamos, porque nos unimos, não os abandonamos e principalmente os resgatamos dele mesmo. Meu pai não era nenhum viciado, criminoso ou algo do gênero. Ele era apenas um TDAH sem tratamento e movido livremente por seus impulsos de vida de querer e tentar ser feliz.

No final de fevereiro de 2020, meu pai, estava de volta em nossas vidas.


Ele baixou a guarda, depois de acaloradas discussões conosco e nos deixou, por 40 dias, cuidar dele. Fizemos alguns pequenos planos juntos, como o dia em que iriamos para Alagoas e ele entraria no altar comigo, durante o meu casamento com o Valério. Entre as previsões positivas, tínhamos conversas um pouco mais pesadas, emotivas e sérias.
Foi durante uma desses papos, onde alternávamos, conversas leves com outras mais emotivas, que ele me disse que estava pronto para partir e até ansioso para que isto acontecesse. Ele me lembrou que teve uma vida maravilhosa e que havia vivido todas as experiências, que desejou ter e mostrou uma gratidão enorme por ser meu pai e dos meus irmãos.

Ele se foi...

Neste momento, depois de mais de um ano de seu desencarne e próximo novamente de outro aniversário por sua vida, faço essa reflexão. Estou tranquila, porém jamais vou poder compartilhar que sei exatamente o que é ser um TDAH e como é quando as pessoas não te compreendem. Agora, para lembrar dele, me olho no espelho, vejo uma longa lista de críticas traçadas por mim e descubro que ninguém pode ser mais cruel do que quando um escorpiano decide ser cruel consigo mesmo.

Reencontro toda a determinação, que utilizei ao longo destes 39 anos, para superar e esconder meu TDAH, que se apresentava com alguns níveis crônicos de hiperatividade, impulsividade e déficit de atenção. Meus irmãos, que também possuem a comorbidade, juntamente, com meu pai nunca perceberam que tentando ser diferente deles era absolutamente igual.  

Neste movimento tentava negar tudo que me tornava fruto daquela família. Mesmo  olhando no espelho todos os dias e tendo o rosto redondo, os olhos fundos e o nariz paterno me recusava ser um deles.  Aos 20 e poucos anos, percebi, pela primeira vez, que não era adotada. Uma fotografia nossa, juntos em Pirenópolis, revelava a semelhança. Eramos parecidos fisicamente, e eu que cresci achando meu pai feio, descobri que poderia ser tão feia quanto ele. Nó!

Como foi difícil ser criança, muito pior adolescente e essa dor surreal que aparentemente não tinha motivos só diminuiu na faculdade. Aos 39, quando olho para trás, vejo que passei boa parte do tempo fugindo da minha natureza aventureira, sonhadora, transformadora entre tantas outras características positivas que trago. Passei tanto tempo querendo ser o meu avô paterno e tentando não ser meus pais (minha mãe e meu pai), que esqueci de ser quem eu deveria ser.

 Depois de algumas horas de terapia, dias, meses ... tento responder: Como que uma menina, que fantasiava ter uma  outra família, consegue encontrar o que realmente importa? É importante deixar grifado, que também negava fazer parte da família da minha mãe, um capítulo, que talvez em outro momento, poderei escrever sobre.

Ressignificar parece a palavra mais bela do dicionário. Sempre tem o momento daquele encontro do qual não conseguimos mais nos esconder. Fazer as pazes com alguns personagens que habitaram minhas ilusões ou verdades é significante. Porque a garota, a adolescente e a aquela jovem estudante e posteriormente profissional estão bem distantes no retrovisor e na frente não consigo ver vítimas, depressão ou algum esconderijo, que para o qual possa fugir quando tudo não parecer ser mais como a menina-mimada quer.

Tenho TDAH, porém tenho algo que minha psicóloga chama de altas habilidades. Habilidade para tanta coisa que inclui o fato de esconder o TDAH, inclusive de mim mesma. Mesmo com desatenção fui segunda colocada no vestibular para Jornalismo da Universidade Federal de Goiás (UFG). Fui repórter, cozinheira, aventureira, consultora e analista de comunicação interna. Na comunicação fiz tantas coisas pequenas, que foram significativamente representativas para o meu bem-estar e principalmente para que pudesse acreditar e continuar. Criatividade, teimosia, persistência e originalidade.

Pela primeira vez, visto confortavelmente a minha pele e trago feliz meus pais, em meu DNA. Consigo vê-los no espelho sem que suas imagens escondam o ser único e transcendente que passei a ser depois que aprendi a me encontrar dentro desta minha desordem tão natural.